segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Análise - Ten: Even Flow


Continuo a série de análises das música do Ten, agora com a poderosa "Even Flow".


- Even Flow-

Quando me sentei para escrever isso, percebi que não ouvia a versão de “Even Flow” do Ten já faziam alguns anos (eu preferia a versão remasterizada, mas a original é muito boa). De qualquer maneira, “Even Flow” lembra, musicalmente, um pouco “World Wide Suicide”, embora fosse esperado algo mais lento considerando o significado de “Even Flow” – algo mais no sentido de cantor-compositor. Ao invés disso, a música tem uma batida quase dançante que, à primeira vista, pode parecer um pouco estranha comparado com a mensagem que a música quer transmitir. Ela é sem dúvida uma das músicas mais emotivas do Ten, muita mais convidativa que “Once”, que tenta com toda força afastar o ouvinte (enquanto simultaneamente atrai a atenção do mesmo através do imediatismo da voz do Eddie; essa tensão é uma das maiores forças do álbum). “Even Flow”, assim como “Jeremy”, tenta trazer o ouvinte para perto; nesse sentido, reflete o desejo que está no coração da música – a busca por um lar, e (implicitamente) alguém para dividir essa casa. Isso cria uma ótima justaposição com a obscuridade da letra. 

“Even Flow” sempre teve um lugar especial no meu coração uma vez que não há problema social que me incomoda tanto como moradores de rua. A nossa complacência em deixar pessoas sozinhas e isoladas (tendo como catalisador os 12 anos de Bush/Reagan que antecederam ao Ten), privadas do elemento mais básico que existe, aponta uma falha real – tanto da nossa democracia quanto da nossa bondade; e é isso que trata “Even Flow” – a tentativa de humanizar uma pessoa que normalmente tentamos ignorar (lembrem-se do outro da versão remasterizada: “I died/I died and you stood there/ I died and you walked by...” para que a gente não esqueça eles). Apenas ao negar a uma outra pessoa um simples sentimento de humanidade, nós podemos criar uma distância mental necessária para abandonar uma pessoa vulnerável ao seu próprio sofrimento; ao fazer isso, nós eliminamos uma importante parte de nós mesmos – a parte que é fundamentalmente social, em que pessoas amam e são amadas pelos outros. “Once” nos mostra quando isso é perdido. De alguma forma, todas as músicas do Ten abordam esse tema em algum ponto, embora façam isso de uma forma mais individual. Aqui (assim como em “Jeremy”) a mensagem só aparece quando está em grande escala - a condenação de práticas sociais que tornam isso possível. 

A música começa com uma das minhas imagens favoritas de todo o catálogo da banda – um homem deitado em um chão duro (eu gosto da justaposição entre a maciez de um travesseiro com a dureza do concreto), congelando pela falta de calor (o “calor” aqui pode ser entendido tanto literalmente quanto figurativamente – a falta de calor humano, de saber que você tem um lugar para chamar de seu e alguém para compartilhá-lo). Tudo que ele tem para se sustentar é uma vaga esperança de que as coisas podem melhorar. De vez em quando as pessoas dão dinheiro ou algo que o ajude a achar alimento ou um lugar para passar a noite, mas o fato é desprovido de qualquer “calor humano”. Nós não sabemos o nome desse morador de rua e, na maioria de vezes, esse ato de caridade para com ele é defensivo – uma forma de remediar a nossa própria culpa ao invés de ajudar de fato essa pessoa. É subentendido que essa pessoa tem alguma doença mental (muitos moradores de rua nesse país sofrem alguma forma de doença mental, e muitos foram expulsos de hospitais nos anos 80 em função da falta de dinheiro para tratamento) – de novo, mais uma chaga que vai contra a nossa nação por abandonar as pessoas mais vulneráveis, deixando-as sozinhas no mundo. É possível ainda que ele nem sofra qualquer tipo de doença; é possível que ele seja uma pessoa alterada devido às suas próprias experiências – do seu doloroso isolamento, mesmo estando no meio de milhares de pessoas que passam por ele diariamente. A segunda estrofe continua no mesmo tema – a sensação de desamparo (tentando arrumar um trabalho mesmo não sabendo ler, o medo do inverno congelante que se aproxima, a vergonha de estar nessa condição); qualquer ajuda, por menor que seja, é dolorosa e serve apenas para lembrar da sua condição de fracassado, ao invés do nosso fracasso por permitir situações como essa; e acima de tudo a mais íntima forma de isolamento que existe: rezar para um Deus aliviar o seu sofrimento, e nunca ter as preces atendidas, sentindo-se profundamente sozinho e abandonado. 

Eu não sei exatamente o que é uma “corrente uniforme” (even flow). Mas mesmo com essa ambiguidade na letra o refrão é muito poderoso – e foca-se na vaga promessa de uma redenção futura. As expectativas e possibilidades (e, como de costume, a voz do Eddie faz um trabalho fantástico ao transmitir isso, assim como a melodia) flutuam em volta dele – lindo, mas impossível de trazer um sentido claro para o refrão. Não fica claro na música se as “mãos sussurrantes” (whispering hands) representam alguma futura ajuda, ou talvez um policial ou assistente social que leve esse morador de rua para algum abrigo temporário. Mas o surpreendente é que ele sente essa mão e ouve uma voz, embora não consiga ligar os dois. A interação não tem um rosto e é desprovida de qualquer ligação humana, mesmo não sabendo para onde vai, ele continua sendo guiado – passivo, sozinho, esperando que algum dia esse rosto adquira foco e possa ser contemplado.


Traduzido por mim
Crédito: Stip (fórum Red Mosquito)


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